INAPLICABILIDADE DO ART. 166 DO CTN
O Diferencial de Alíquotas de ICMS – DIFAL foi inicialmente criado com o intuito de antecipar o recolhimento de ICMS devido no Estado de destino. A partir do DIFAL, o adquirente de mercadoria oriunda de outro Estado da federação ou do Distrito Federal ficou obrigado a antecipar o recolhimento de ICMS para o momento da entrada da mercadoria no Estado de destino. Assim, a diferença entre a alíquota interestadual e a interna, passou a ser recolhida na entrada da mercadoria e não mais na revenda desse produto para o varejo ou para o consumidor final.
Todavia, os motivos determinantes para a criação do DIFAL sofreram mutações nada ingênuas. O que antes era política fiscal instaurada para conceder maior eficiência à fiscalização, passou a ser justificado como espécie de instrumento fiscal, utilizado, em tese, para equilibrar a competitividade entre o Estado de saída da mercadoria e o Estado de domicílio do destinatário. Para as fazendas dos Estados e do Distrito Federal, o DIFAL consertaria a distorção existente no território brasileiro, quanto à existência de estados que são verdadeiros polos produtores, com diversas vantagens operacionais e fiscais, e estados com baixa produção fabril e industrial.
Até então, não haveria grande problema na simples mudança argumentativa, mesmo porque o recolhimento do DIFAL estava limitado às pessoas jurídicas sujeitas aos regimes ordinários de tributação (lucro presumido ou real), com recolhimento direito de ICMS e com direito de creditamento. Na prática, o DIFAL continuaria como antecipação do ICMS, sem onerar (ainda mais) a cadeia produtiva.
Todavia, essa alteração dos motivos determinantes adveio do aumento das compras via internet por consumidor final, o que fomentou a necessidade de se retirar a destinação integral das receitas de ICMS apenas ao estado que sediava as empresas de e-commerce[1]. Dentro desse cenário, as micro e pequenas empresas foram inseridas na obrigação de recolhimento do DIFAL, independentemente de atuar no mercado online ou mediante estabelecimento físico, criando, aqui, situação de inconstitucionalidade aparente.
Sabe-se que a LC 123/06 veda o aproveitamento de crédito por parte das empresas que optam pelo regime do Simples Nacional[2]. Essa medida se justifica pela redução significativa da carga tributária e pela necessidade de simplificação da contabilidade fiscal.
Mas, diante da extensão do DIFAL sobre essas pessoas jurídicas do regime simplificado, o recolhimento de ICMS foi demasiadamente onerado e se tornou inconstitucionalmente cumulativo. Veja que o contribuinte do Simples adquire mercadoria tributada pelo ICMS à alíquota a que esteja sujeito o vendedor; paga o diferencial de alíquotas na entrada da mercadoria no estado do destino; e, novamente, paga ICMS na revenda dessa mesma mercadoria no o montante inerente ao Simples Nacional, vez que ai está embutido percentual desse tributo. Assim, o contribuinte que antes recolhia, por exemplo, apenas 4% de ICMS no pagamento único do Simples, passou a recolher, no caso do Distrito Federal, mais 5% de DIFAL, pago antecipadamente e sem qualquer direito de se creditar.
Portanto, o DIFAL no Simples Nacional é nova incidência tributária na cadeia de circulação da mercadoria e, inevitavelmente, provoca a cumulação de ICMS para as micro e pequenas empresas, que, em alguns casos, chegam a recolher mais DIFAL do que Simples Nacional.
Além de ferir o mandamento constitucional da não cumulatividade do ICMS (art. 153, § 3º, II da CF/88), essa sistemática também contraria a determinação de tratamento favorecido às micro e pequenas empresas (art. 170, IX da CF/88).
Essa discussão já alcançou as portas do Supremo Tribunal Federal, havendo o reconhecimento do tema como de repercussão geral, com fortes indicativos de julgamento em favor dos contribuintes.
Mas surge outro aspecto polêmico, com relação a interpretação dada pela jurisprudência quanto a aplicabilidade do art. 166 do Código Tributário Nacional[3], que dispõe acerca da impossibilidade de restituição do tributo indireto, aquele em que teria havido repasse do ônus econômico a terceiro.
O Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento geral de ser vedada a repetição de indébito do ICMS, tendo em vista a transferência do encargo financeiro para terceiro[4]. O que se constata na via jurisprudencial é a interpretação equivocada dessa norma, existindo verdadeira generalização quanto aos tributos indiretos e confusão entre os conceitos de transferência jurídica e de transferência econômica, acarretando invasão descabida na seara eminentemente privada e negocial e o enriquecimento sem causa do Estado.
O conceito de transferência do encargo econômico está encabeçado no corpo do CTN, e nada mais é que a atribuição de responsabilidade tributária àquele que não é contribuinte do tributo. Portanto, o art. 166 somente se aplicaria dentro do contexto normativo do art. 122, parágrafo único, inciso II do CTN. Ou seja, não basta a transferência econômica, sendo esta rasa e inútil para fazer incidir a restrição objeto de estudo, devendo haver também a TRANSFERÊNCIA JURÍDICA (RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA).
A transferência meramente econômica se dá tão somente dentro do campo privado, e não interessa ao direito tributário para fins de aplicação do dispositivo legal restritivo. O valor da compra e venda de um produto ou serviço é um predicado do indivíduo em sua relação entre privados, da liberdade econômica dos agentes particulares, e não pode ser utilizado em favor do enriquecimento inconsequente do Estado Fiscal.
O STJ vem produzindo julgados que mais se aproximam da realidade fático-jurídica pretendida pela norma, em contraponto ao entendimento geral objeto de crítica, como a possibilidade de restituição do ICMS nos casos de mera transferência do tributo entre estabelecimentos comerciais de um mesmo contribuinte, vez que nesse estágio da cadeia comercial a titularidade física e jurídica da mercadoria ainda pertencem à empresa, dispensando-se a comprovação da não transferência do encargo econômico ou a autorização daquele não é responsável tributário nos termos da lei[5]. Tal caso é plenamente replicável à hipótese das micro e pequenas empresas vinculadas ao Simples Nacional que estariam obrigadas ao recolhimento do DIFAL na entrada das mercadorias no estabelecimento.
A exemplo do caso mencionado, o STJ tem ampliado as exceções à própria jurisprudência e vem aplicando o dispositivo de forma mais adequada à finalidade da norma, mas ainda há a necessidade de maior esforço indutivo por parte dos contribuintes para que o giro jurisprudencial ocorra.
[1] Para tanto, a Constituição Federal foi alterada por meio da EC nº 87/2015, para ampliar a incidência do DIFAL e com previsão de gradação do percentual a ser destinado a cada ente federativo (art. 99 do ADCT - em 2016 60% ficaria com o estado destinatário, sendo em que 2019 esse percentual salta para 100%). No âmbito do CONFAZ, foi instituído o Convênio nº 93/2015.
[2] BRASIL. LC 123/2006. Art. 21 (...) § 9º É vedado o aproveitamento de créditos não apurados no Simples Nacional, inclusive de natureza não tributária, para extinção de débitos do Simples Nacional
[3] BRASIL. Código Tributário Nacional. Art. 166. A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EDcl no AgRg no REsp 1418303/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 18/06/2014; AgRg no REsp 1418207/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 02/05/2014; AgRg no REsp 1437789/RS, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 02/05/2014.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 581.679/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/12/2018, DJe 04/02/2019
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